A caminho da vigésima Marcha do Orgulho LGBT em Lisboa (que foi a primeira no país), qualquer jovem rapariga ou rapaz sabe que a sua orientação sexual e a das pessoas à sua volta pode ser hetero, bi ou homossexual. Instalou-se na sociedade portuguesa um certo grau de “normalização” da diversidade sexual – entre aspas, pois não se trata de uma institucionalização normativa, mas antes de uma perceção mais humanista e libertadora das possibilidades humanas.
Esse rapaz ou essa rapariga não vive ainda, todavia, numa sociedade desprovida da hegemonia das visões patriarcais e heterossexistas. Vive numa sociedade que passou por enormes avanços legais e por uma transformação substancial das mentalidades, sim, mas que ainda obriga cada geração de pessoas lésbicas, bi ou gay a um esforço de autoconstrução, de gestão das relações familiares, de amizade e laborais, de negociação no espaço público e de cálculo do custo social da sua identificação. Em suma, ainda se paga pelo armário – pela ocultação que conduz a uma vida coartada – e ainda se paga pelo coming out – a revelação da identidade própria e as consequências que isso acarreta em ambientes homofóbicos. Há muito a fazer – e de natureza diferente – para lá dos avanços legais.
Com o 25 de abril de 1974 terminava o regime que remetia as pessoas gay e lésbicas para a categoria de doentes e/ou criminosas – para não falar da remissão para a categoria de pecadoras, propugnada pela influente igreja católica romana. Todavia, quer o processo revolucionário, quer o processo de construção de uma democracia liberal, focaram mais nas questões de direitos políticos, da descolonização e das relações entre as classes sociais, do que nas questões de género, sexuais, ou etno-raciais. Apesar do surgimento de grupos e publicações de cariz LGBT logo a partir dos anos oitenta do século vinte, seria necessário esperar pela luta pela despenalização do aborto e pelas dinâmicas identitárias geradas pela crise do HIV-sida para que as questões de género e sexuais assumissem explicitamente uma vertente feminista e LGBT. Tal aconteceu a partir de meados da década de noventa, portanto bem mais tarde do que nas democracias desenvolvidas de outras paragens do Ocidente (as questões etno-raciais, diversas da questão política e estatal da descolonização, ainda teriam de esperar mais, até à segunda década do corrente século)
O final da década de oitenta do século 20 foi caracterizado pela consolidação da democracia liberal, pela adesão de Portugal à UE em 1986, e pelo surgimento de uma cultura urbana crescentemente desvinculada das preocupações políticas do período revolucionário e da normalização democrática, e mais apostada na transformação das vidas quotidianas e nos direitos identitários – a política da vida – ao mesmo tempo que se alinhava por padrões de comparação internacionais, num movimento próprio da globalização. Em 1990 a OMS deixa definitivamente de incluir a homossexualidade como doença e em 1995 ativistas da luta contra o HIV-sida organizavam-se para fundar a ILGA-Portugal, o que aconteceria oficialmente em 1996. No ano seguinte, o Tratado de Amesterdão reforçaria a visão europeia de uma postura anti-discriminação e em Portugal inciava-se a campanha pela inclusão da categoria da orientação sexual no artigo 13º da Constituição. No mesmo ano de 1997 é inaugurado o Centro Comunitário Gay e Lésbico de Lisboa, realiza-se o primeiro Arraial Pride, no Príncipe Real, bem como o primeiro festival de cinema gay e lésbico (mais tarde redesignado como Queer). Em 1998 o primeiro referendo do aborto não teria carácter vinculativo mas marcaria de forma clara as divisões na sociedade portuguesa em torno quer do género e da sexualidade, quer da influência da igreja católica romana e do secularismo e laicidade.
A aposta nas transformações legais como forma de pedagogia a partir da lei e dos órgãos de soberania torna-se então cada vez mais clara (em Portugal foi mesmo dominante e o movimento LGBT não viveu a fase identitária e cultural dos anos sessenta e setenta), com as propostas da JS no sentido de uma lei de uniões de facto, mas revelando ainda uma forte tendência para a não inclusão das pessoas LGBT. Se a lei de 1999 consagraria as uniões de facto para casais hetero apenas, já em 2001 a lei contemplaria também os casais do mesmo sexo, ficando estes, no entanto, excluídos do acesso à adoção. O gradualismo caracterizará todo o progresso político em Portugal. Outra característica deste processo será o facto de a agenda da igualdade começar pela esquerda à esquerda do PS e pela JS, penetrando lentamente no PS que, enquanto partido do arco do poder e governação, garantirá, então, as transformações legais definitivas.
Se em 2004 a orientação sexual entra finalmente no artº 13º da Constituição, é então também que começa a campanha pela igualdade no acesso ao casamento civil, que será a estratégia central do movimento mais organizado e mais articulado com as instituições democráticas. O ano de 2006 assistirá ao assassinato de Gilberta Salce Júnior, marcando a visibilidade da questão específica da identidade de género e o ano seguinte, 2007, ficará marcado pela vitória do Sim no segundo referendo ao aborto, um momento divisor das águas históricas em Portugal. O paulatino convencimento do PS em torno da importância – e viabilidade social e cultural – da igualdade no casamento levaria à aprovação da lei de 2010 (ainda que, e de novo, sem o direito a candidatura à adoção por casais do mesmo sexo) e, logo a seguir, à primeira lei de identidade de género.
Os últimos anos dos anos noventa e a primeira década do século 21 ficaram marcados pelo surgimento de um muito ativo e articulado movimento LGBT que conseguiu fazer o trabalho de convencimento dos partidos, sobretudo à esquerda, e dos órgãos de soberania, num processo de construção de uma nova hegemonia. Após a aprovação do casamento, e com a crise financeira e social, a intervenção externa, e um período de extremo conservadorismo, as conquistas seguintes verificar-se-iam apenas quando do regresso da esquerda ao poder com a experiência da “Geringonça”: a inclusão da igualdade nas candidaturas à adoção para os casais do mesmo sexo (em 2016), a igualdade no acesso às técnicas de procriação medicamente assistida (em 2016, apesar do retrocesso posteriormente imposto pelo Tribunal Constitucional quanto ao anonimato das doações de gâmetas) e a revisão da lei da identidade de género (passando a consagrar a autodeterminação em 2018).
No final da segunda década do século XXI Portugal está na linha da frente da consagração dos direitos legais das pessoas LGBT à escala mundial. Sem dúvida que este é um motivo de orgulho. Sem dúvida, também, que as mentalidades mudaram substancialmente, como aludido no exemplo daquele rapaz ou daquela rapariga no início deste texto apesar de haver ainda poucas saídas do armário e visibilidade LGBT, por comparação com países semelhantes.
Seja como for, sabemos que em qualquer contexto uma coisa é a lei, outra a sua aplicação, uma coisa os princípios que regem uma polis, outra as vivências das pessoas. Para que aplicação e vivências sejam efetivamente livres e emancipadas, precisamos sobretudo de mecanismos de vigilância e implementação, de educação e formação, e de promoção da visibilidade e da igualdade de oportunidades. Seja nos serviços públicos e nas administrações do estado, nas empresas, na prestação de serviços ou no sistema educativo e mediático; seja na promoção da igualdade de oportunidades e da dignificação e investimento na mesma no e pelo estado. E tal terá de ser feito reconhecendo a interseccionalidade dos privilégios e das discriminações: no plano da igualdade de género, que partilha com a orientação sexual e a identidade de género os problemas suscitados pelo patriarcado (veja-se, por exemplo, a maior invisibilidade das lésbicas ou o relativo desprezo a que, por sexismo, as suas questões são votadas pelas instituições e movimentos, como no caso da PMA), quer no plano das questões etno-raciais e de identidade nacional, entre outras.
O que temos pela frente é um trabalho paradoxalmente mais difícil do que o das conquistas legais básicas. É um trabalho que pode inclusive não ser imediatamente motivador para o associativismo e o ativismo. Mas que é mais necessário ainda – diríamos mesmo, urgente – em tempos de revanchismo populista e neo-fascista, em que as questões de género, de sexualidade e raciais são o primeiro e preferencial alvo do ataque.
A caminho da 20ª edição daquela que foi a primeira Marcha do Orgulho LGBT em Portugal, temos orgulho no que coletivamente fizemos como comunidade. E temos a frieza e a maturidade necessárias para mudarmos a agulha das prioridades, para definirmos o que falta fazer e como. É um desafio que está no começo, e é urgente começá-lo.