coisas do género

Coisas do género em 2018

A plataforma coisas do género surgiu no dia 25 de abril de 2018, porque há muitas coisas do género para mudar. O atual sistema de poder e de desigualdade, sempre assente no controlo da sexualidade e da reprodução, continua a ter muitas manifestações violentas – também no plano da violência simbólica. E se o género vem do passado, ele continua bem vivo no presente, apontando para um futuro ainda incerto. Mobilizamo-nos porque queremos que esse futuro seja de igualdade – e hoje olhamos para o presente e para o passado mais recente, com enfoque nas muitas coisas do género que aconteceram em 2018.

Em 2018 vimos um mundo a várias velocidades, onde há cada vez maior consciencialização e luta pela igualdade e contra a discriminação de género, onde os movimentos feministas se fazem crescentemente ouvir, mas onde em simultâneo há um recrudescimento de conservadorismos e de populismos diversos, uns mais cavernícolas do que outros. É nesse mundo – que é afinal o nosso – que são eleitos Trumps e Bolsonaros, com plataformas abertamente misóginas e que assentam também na campanha apoiada por várias religiões contra uma chamada “ideologia de género” que afinal é simplesmente a recusa da discriminação. Já a verdadeira ideologia de género é a que está na base do sistema que sempre existiu no passado e que no presente continua a eleger Trumps e Bolsonaros, neste mundo. A dúvida é se estes serão os últimos estertores de um sistema que está em falência ou o anúncio de um backlash mais prolongado – e a resposta depende daquilo que conseguirmos ir mudando.

Num contexto de avanços e retrocessos pelo mundo, que coisas do género aconteceram por cá? Também uma crescente distonia entre o clamor social de algumas vozes, e as instituições, com especial destaque para as decisões dos tribunais. Elencamos alguns dos pontos que nos parecem particularmente relevantes, de acordo com as áreas que identificamos também como prioritárias.

 

PODER

2018 viu acontecer a primeira greve feminista em Espanha, no dia 8 de março, exigindo a igualdade salarial que por cá também está longe de existir. Nos EUA, as eleições intercalares permitiram que uma grande diversidade de mulheres passassem a ser Representantes no Congresso – de um país liderado por um misógino orgulhoso.

Por cá:

– Continuamos a não ter uma Presidente da República em Portugal, mas também continuamos a ter só 10% das Presidentes de Câmara, uma realidade que a atual revisão da “lei da paridade” não vai alterar. Em simultâneo, continua a haver quem se posicione contra quotas para lugares de poder e contra a linguagem inclusiva.

– Apesar da nova Estratégia Nacional para a Igualdade e para a Não-Discriminação, continua a haver a promoção de esterótipos em campanhas como a das “princesas que não fumam”.

 

CORPO / SEXUALIDADE / DIREITOS SEXUAIS E REPRODUTIVOS

Pelo mundo que nos é mais noticiado, o aborto continua a ser crime na Argentina, apesar do progresso na Irlanda. Em França a antiga promessa da PMA continua a ser adiada para mulheres solteiras e casais de lésbicas.

Por cá:

– O grande retrocesso na PMA veio de uma decisão do Tribunal Constitucional; a lei já previa o acesso à identidade genética de crianças que nascessem por meio de métodos de PMA com doação de gâmetas; o Tribunal veio agora exigir também o acesso à identidade civil de dadores, na sequência do alargamento da PMA a mulheres solteiras e casais de lésbicas. O valor da paz familiar (que o mesmo Tribunal reconhecia como preponderante em 2009) deixou de ser suficiente para se sobrepor ao que classificámos como o novo direito constitucional à curiosidade. O resultado: para além do caos gerado face a todos os processos de PMA em curso (que dependiam de doações anónimas), fica como legado o retrocesso quanto à autonomia das mulheres na reprodução.

– No ano em que pela primeira vez existe uma Ministra lésbica fora do armário (facto que já a tornou suscetível a exigências particulares), houve também o coming out da deputada do Bloco de Esquerda Sandra Cunha, bem como do atleta Célio Dias e do vice-presidente do CDS-PP, Adolfo Mesquita Nunes. No entanto, a ideologia do armário está bem viva na decisão da Entidade Reguladora da Comunicação Social face à censura de um beijo lésbico no canal Panda Biggs e o que ainda se publica hoje num livro de Direito do Trabalho face ao direito a discriminar com base na orientação sexual.

 

VIOLÊNCIA DE GÉNERO

Nos EUA, Christine Ford e Brett Kavanaugh foram a representação da tensão de género subjacente à era Trump. Houve muito mais vozes audíveis em apoio de Christine Ford, mas, ainda que audíveis, elas não foram ouvidas: o desfecho do duelo foi a nomeação de Kavanaugh

Por cá:

– o #metoo continua a não ter a repercussão que seria expectável em função da força do movimento mundial. As reações ao caso Mayorga/Ronaldo demonstraram o longo caminho a percorrer para que se identifique o sexismo (e para que, a partir dessa identificação, se possa evitar os automatismos associados). Não admira que a Justiça em Portugal tenha sido notícia pelas piores razões: do acórdão da “sedução mútua” ao acórdão da “moca com pregos”, a violência de género está longe de ser compreendida pela Justiça (que ainda não o é).

 

O que queremos para o futuro? Celebrar e multiplicar bons exemplos de resistência e de estratégia de mudança. Eis as nossas escolhas relativas a 2018:

 

PESSOA DO ANO: MARIELLE FRANCO 

No Brasil, o assassinato de Marielle Franco representa a eliminação da diversidade incómoda: uma mulher negra, lésbica, favelada, politizada, com voz. A vitória de Bolsonaro nas eleições presidenciais significou a vitória – por ora – da estratégia de promoção da ideia de “ideologia de género”, apoiada por várias religiões (e órgãos de comunicação social). Já a verdadeira ideologia do género, que separa mulheres e homens em termos de funções e papéis, continua a ganhar. Mas por quanto tempo? É que Marielle Franco tornou-se também um símbolo de resistência. Em 2018, passámos a dizer – e diremos daqui para a frente: Marielle presente.

 

NOVIDADE DO ANO: INMUNE

O “INSTITUTO DA MULHER NEGRA EM PORTUGAL – INMUNE” surgiu em 2018, trazendo um novo espaço de afirmação em Portugal das vozes de mulheres negras, africanas e afrodescendentes, tão silenciadas no passado e no presente. Quebrar estes silêncios em Portugal é dar um contributo fundamental para combater sexismo e racismo, preconceitos tão enraizados e naturalizados que tipicamente são difíceis de identificar por quem os reproduz. O INMUNE chegou este ano para nos ajudar a aprendermos a ouvir as vozes que nunca soubemos ouvir. A partir de agora, ouçamo-las.

 

OBRA DO ANO: NANETTE

O espetáculo da australiana Hannah Gadsby, disponível no Netflix, é a obra que, para nós, define o agora. Na esteira do #metoo e da discussão sobre o politicamente correto e sobre os limites do humor, Gadsby – uma mulher lésbica – questiona as suas escolhas passadas enquanto humorista e define como novo objeto do seu humor os homens brancos heterossexuais, mostrando que as margens podem deixar de o ser ao questionarem o “centro”. Mas, mais do que isso, Hannah Gadsby compreende a importância da empatia no mundo de hoje e escolhe por isso apresentar a sua história– e, ao fazê-lo, revoluciona a comédia stand-up. Precisamos de mais histórias e de mais vozes – porque são elas que vão gerando pequenas revoluções nas instituições que foram (também) construídas à medida do sexismo. 

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