A caminho do Dia Mundial de Luta contra a Homofobia, Transfobia e Bifobia – que se assinala hoje –, a Agência da União Europeia para os Direitos Fundamentais (FRA) publicou os resultados do Inquérito LGBTI Europeu de 2019. Tratou-se do 2º inquérito conduzido à escala europeia, depois do inquérito conduzido também pela FRA em 2012.
É particularmente difícil obter números que permitam orientar políticas públicas nesta área, nomeadamente num país que ainda recusa recolher informação sobre a orientação sexual, quando esta categoria é necessariamente uma categoria declarativa.
Recusar a política do “não perguntes, não digas” (que nunca foi só a política expressa das forças armadas estado-unidenses, mas a política tácita um pouco por todo o lado) significa criar condições para se conseguir dizer – para que cada pessoa possa afirmar-se como LGBTI – e significa também saber perguntar.
Ora, a FRA perguntou e há muitos dados para explorar aqui: https://fra.europa.eu/en/data-and-maps/2020/lgbti-survey-data-explorer
E aqui estão alguns pontos que julgamos valer a pena destacar, numa análise inicial:
– o ligeiro progresso face a 2012:
- 54% das pessoas LGBTI portuguesas assinalam um ligeiro decréscimo do preconceito e da intolerância, na sequência de – e em conjunção com – progressos significativos no plano legislativo e executivo.
- face aos restantes países, há uma percentagem muito menor (5%) de reporte de ataques físicos ou sexuais por se ser LGBTI em Portugal, noticiada amplamente como um progresso mas ainda muito preocupante: uma em cada 20 pessoas da amostra foi alvo de um ataque físico ou sexual por ser LGBTI nos últimos 5 anos.
- a percentagem de pessoas LGBTI que afirmam ter sido discriminadas nos últimos 12 meses – e que têm essa perceção, portanto – é de 40%; o progresso face ao número de 2012 (51%) é ainda tímido. Importa, contudo, frisar que se trata da perceção da discriminação por parte das pessoas inquiridas – e que, como se verá à frente, os números do armário podem estar a fazer subestimar esta realidade.
– os enormes números do armário, com Portugal a destacar-se ao lado dos países do Leste da Europa, ainda que as leis e as instituições em Portugal tenham dado passos decisivos com um progresso ainda não imaginável nesses países:
- 43% das pessoas afirmam estar no armário no emprego
- 42% das pessoas afirmam estar no armário na família
O medo é ainda uma realidade – e a igualdade ainda é uma miragem. E é uma miragem apenas para quem a consegue sequer ver, porque apenas 25% das pessoas que afirmam estar completamente no armário no trabalho afirmam ser alvo de discriminação. Ou seja, pelo menos 75% das pessoas que se sentem forçadas a viver diariamente em silêncio sobre a sua identidade não percecionam que exista discriminação nesse facto:
A perceção de que o silêncio é e tem sido a principal forma de discriminação está ainda longe: se uma pessoa se sente forçada a esconder de forma sistemática a sua identidade, é a sua primeira liberdade de expressão – sobre quem se é – que é limitada. A discriminação é gritante, mas ainda surge como um grito mudo para 75% das pessoas que vivem no armário do silêncio.
É, por isso, preciso cautela quanto à interpretação dos resultados sobre a perceção da discriminação em Portugal – e podemos inferir, com base neste exemplo, que a percentagem de 40% de pessoas que afirmam ter sido alvo de discriminação estará muito abaixo da realidade da discriminação (que se faz em grande medida através da imposição de armários).
Aliás, o futuro do armário também parece negativo: nas escolas ainda há 56% das pessoas LGBTI a esconder a sua identidade. A realidade do insulto, bem presente também nos dados, continua a condicionar a construção de identidades – e a criar armários que limitam a primeira liberdade de expressão, a da identidade.
Lutar contra a discriminação com base na orientação sexual significa quebrar o silêncio: há mesmo muito trabalho por fazer para que todas as pessoas consigam afirmar-se sem hesitações – e para acabar de vez com o a política do “não perguntes, não digas”.
– a dificuldade patente quer na construção quer na divulgação do próprio Inquérito em obter informação relevante sobre a discriminação das mulheres:
- o Inquérito pergunta às pessoas LGBTI se foram alvo de discriminação por serem LGBTI mas as mulheres desta amostra terão provavelmente sido alvo de discriminação múltipla; por um lado, a discriminação em várias áreas pelo facto de serem mulheres poderá ser suficientemente forte para retirar saliência à (perceção da) discriminação com base na orientação sexual; por outro, ao ter sido construído para não contemplar uma questão sobre a experiência de discriminação com base no sexo, poderá haver uma subestimação da experiência da discriminação das mulheres LBTI – que será sempre múltipla.
- Para além disso, a amostra inclui apenas 16% de mulheres lésbicas e 20% de mulheres bissexuais quando há 42% de homens gay e 7% de homens bissexuais, indiciando uma possível distância maior de organizações de vários países que colaboram na divulgação do inquérito em relação às mulheres.
A compreensão da ligação umbilical entre sexismo e discriminação das pessoas LGBTI é fundamental para que possa haver mais dados que informem a construção de políticas públicas eficazes – e seria importante que essa ligação estivesse mais presente na elaboração deste Inquérito. Sem irmos à raiz da discriminação – e sem tirarmos o género do armário -, não conseguimos eliminá-la. O Dia Mundial de Luta contra a Homofobia, Transfobia e Bifobia tem sempre que ser também um Dia Mundial de Luta contra a Desigualdade entre Mulheres e Homens. É esse Dia – conjunto – que assinalamos hoje.