Em 2006 foi aprovada a Lei Orgânica n.º 3/2006, que veio estabelecer que as listas para a Assembleia da República, para o Parlamento Europeu e para as Autarquias Locais teriam que ser compostas para assegurar uma representação mínima de 33% de mulheres e de homens. Ficou conhecida como a Lei da Paridade. Muito mais mulheres passaram a estar representadas nas listas para as várias eleições (ainda que a Lei não tenha dado o passo de promover percentagens mínimas de mulheres nas candidaturas às presidências de câmaras, como se vê aqui).
Mais recentemente, a Lei n.º 62/2017 veio obrigar a uma representação mais equilibrada entre mulheres e homens também nos órgãos de administração e de fiscalização das entidades do setor público empresarial e das empresas cotadas em bolsa. O limite mínimo para a participação de mulheres nos órgãos de administração é de 33% nas empresas do setor público já em 2018, enquanto que nas empresas cotadas em bolsa esse limite mínimo será de 20% em 2018 e 33% a partir de 2020. Os mesmos limites mínimos aplicam-se aos homens. A proposta do Governo que lhe deu origem foi então acompanhada de um projeto do Bloco de Esquerda com um âmbito mais abrangente e com uma promoção da ideia de paridade que se refletia num requisito de 50% para cada um dos (dois) sexos.
É altura de reconhecer a importância determinante destas leis e, em simultâneo, de contrariar a lógica com que têm sido promovidas – e de recomendar o fim da ideia de “paridade”.
A paridade é uma falácia. Não existe um “par humano” composto por um homem e uma mulher. Existe uma enorme diversidade de mulheres e uma enorme diversidade de homens. Mulheres e homens acumulam aliás muitas outras características identitárias, que nos permitiriam classificá-los de tantos outros modos, além do sexo. Ainda assim, é evidente a dificuldade acrescida de acesso ao poder para as mulheres – e é esse, e apenas esse, o elemento que torna fundamental advogar e promover medidas de ação positiva, desejavelmente de ordem transitória, que contribuam para eliminar a atual desigualdade.
Mas advogar que a presença de mulheres na política ou nos mais altos cargos de decisão das grandes empresas decorre de uma qualquer dualidade “original”, ou seja, de uma essência masculina ou feminina e da sua suposta complementaridade não está longe do argumento de quem se opunha ao casamento entre pessoas do mesmo sexo dizendo que “Deus criou o homem e a mulher” ou, de forma equivalente, que “a Natureza criou o homem e a mulher”. Não, não precisamos de mais mulheres em posições de liderança para incrementar os traços de feminilidade na tomada de decisões. Precisamos é de garantir que quem chega a esses lugares são as pessoas mais capazes, o que só acontecerá se todas e todos tiverem iguais oportunidades de lá chegar.
O argumento da paridade poderá ter sido útil para a aprovação de leis importantes, mas as leis contêm em si mesmas um erro de base que advém desse argumento: a imposição de quotas mínimas para homens em lugares de tomada de decisão. Sempre houve quotas mínimas para homens nesses lugares –tradicionalmente essas quotas mínimas chegavam aos 100%. Não estavam na lei porque não precisavam – nem precisam – de estar. Num contexto particularmente adverso para mulheres, a presença de mulheres em cargos de decisão advém do mérito – ao contrário da presença de homens, que sempre garantiram lugares também para os medíocres. É, pelo contrário, altura de haver quotas máximas para homens, evitando essa mediocridade, promovendo a igualdade de oportunidades que está longe de acontecer e reparando o peso histórico da discriminação das mulheres. Quando a igualdade de oportunidades se tornar uma realidade, deixa de haver fundamento para a imposição de quotas.
Do ponto de vista do género, será por isso errado impor quotas mínimas de 33% também para homens – e mais ainda com quotas superiores. Uma administração de uma grande empresa que hoje seja constituída apenas por mulheres sê-lo-á certamente por uma questão de mérito, que tem de ser suficientemente evidente para ultrapassar todos os telhados de vidro. Não há razão para advogar uma quota mínima para homens, porque não existe um problema de acesso ao poder para homens. É esse problema que leis como estas devem contribuir para resolver, com quotas mínimas para mulheres (ou seja, quotas máximas para homens). O único argumento que podemos ver como possivelmente relevante para a exigência de quotas mínimas para homens (mas mesmo mínimas, nesse caso) é um argumento de diversidade – e não de paridade.
Mais: do ponto de vista da interligação entre género e outras categorias de discriminação, torna-se ainda mais evidente que o argumento da paridade é fechado e anula qualquer possível ponte. Não é por um argumento de paridade que se poderá defender representações mínimas de outros grupos minoritários aos mais diversos níveis. Aliás, o argumento por vezes ventilado da maioria numérica de mulheres também é um argumento paralelo (e que impede alianças), por retirar o enfoque no facto relevante: a minoria que as mulheres de facto representam no acesso ao poder.
Não há dúvida de que há muito mais a fazer para garantir a representação adequada de mulheres e de várias minorias (nomeadamente étnicas e sexuais) em lugares de decisão. Façamo-lo, mas façamo-lo com a tónica certa: pela igualdade de oportunidades, pela reparação do nosso passado coletivo de discriminação, pela diversidade.