Aguardamos a todo o momento os projetos que darão corpo à nova doutrina do Tribunal Constitucional e que deverão, a nosso ver, ter que incluir as seguintes medidas:
- A obrigatoriedade de testes de ADN para todas as crianças que nasçam, bem como às pessoas que fiquem registadas enquanto mãe ou pai.
- Em caso de não conformidade dos resultados dos testes de ADN, uma averiguação oficiosa conduzida pelo Ministério Público, que permita encontrar a origem do material genético (à semelhança do que já acontece em casos de ausência de pai).
- A não comunicação dos resultados dos testes e de eventuais averiguações às pessoas que fizeram o registo enquanto mãe ou pai; a informação deverá ser arquivada pelo Estado e revelada apenas à criança, caso a peça quando atingir a maioridade.
Vamos a factos e a um pouco de história.
Em 2016, as técnicas de procriação medicamente assistida passaram a ser acessíveis a todas as mulheres, incluindo pela primeira vez mulheres solteiras e casais de mulheres. Embora o acesso à PMA já estivesse definido desde 2006 e estabelecesse a doação anónima de gâmetas, o alargamento do âmbito de beneficiárias significou que a PMA passou a tornar evidente que a reprodução depende apenas da existência de uma mulher e de um espermatozoide – e a tornar evidente que não tem que existir um homem associado ao processo.
Face à ameaça que esta medida representa num sistema que está construído para que homens possam controlar a sexualidade e a reprodução, um conjunto de deputadas e deputados do CDS e do PSD levou ao Tribunal Constitucional a questão do sigilo quanto à identidade de dadores, tendo o Tribunal alterado a sua doutrina anterior. Em vez da “salvaguarda da paz familiar” que o Tribunal defendera num acórdão anterior a 2016 quando confrontado com a questão do anonimato, desta vez o Tribunal deu primazia ao que classificámos como o “direito fundamental à curiosidade”, obrigando à possibilidade de conhecimento da identidade civil de dadores – e obrigando portanto a que haja sempre pelo menos o nome de um homem no processo.
É de realçar que o direito à identidade genética já estava assegurado pela lei, bem como a possibilidade de averiguar uma eventual consanguinidade para efeitos de casamento e reprodução. O que o Tribunal Constitucional exigiu foi mesmo a revelação do nome de quem doou o material genético, afirmando que está em causa o direito à identidade pessoal.
Mais: como o Tribunal decretou o fim retroativo do sigilo, todos os processos relativos à procriação medicamente assistida foram suspensos. Uma das consequências terá sido a impossibilidade de utilizar vários embriões congelados já produzidos com recurso a gâmetas de dadores anónimos, o que deverá preocupar particularmente as mesmas deputadas e os mesmos deputados que interpuseram o recurso para o Tribunal Constitucional, porque há quem defenda que está em causa “a vida humana”. Pelo nosso lado, preocupamo-nos com as vidas humanas das mulheres cujos projetos reprodutivos ficam suspensos, preocupamo-nos com o turismo reprodutivo que volta a ser necessário (porque Espanha permite doações anónimas) e preocupamo-nos com a lógica valorativa fundamentalmente misógina do Tribunal Constitucional (na sua composição atual).
No entanto, face a esta decisão do TC, estão já neste momento no Parlamento iniciativas para alterar a lei da PMA. Não fazendo valer da decisão retroativamente, ao contrário do que o TC preconizava, os projetos do BE e do PS permitem que seja revelada a identidade civil de dadores à pessoa que nasceu com base em técnicas de procriação medicamente assistida. Cada espermatozóide passará assim a ter um nome associado.
A nosso ver, estes projetos são claramente insuficientes para dar resposta ao novo direito criado pelo Tribunal Constitucional. É que, sendo tão fundamental o acesso à identidade pessoal, e sendo a identidade pessoal aparentemente definida pela identidade civil de genitoras/es, permitir esse acesso apenas para quem nasça com base no recurso a PMA parece-nos altamente discriminatório. Há mesmo muitas pessoas hoje – uma esmagadora maioria de pessoas – ainda sem acesso à sua “identidade pessoal” por não terem qualquer confirmação científica da identidade civil de genitoras/es. E não ter identidade pessoal parece-nos terrível, de facto. Assim, embora não sugiramos medidas que atribuam uma identidade pessoal a todas as pessoas, porque queremos evitar decisões com efeitos retroativos, sugerimos que tudo mude a partir de agora: qualquer criança que nasça deverá poder ter acesso a essa informação – e caberá portanto ao Estado assegurá-la.
Não é admissível que a nova doutrina do TC afete apenas a PMA, tornando-a um caso especial de exigência quanto à disponibilização de informação genética e civil de genitoras/es. Temos por isso que recusar o tratamento diferenciado (e até privilegiado) das crianças que nasçam por essa via – e, pelo contrário, garantir o novo “direito fundamental à curiosidade” para todas. Qualquer projeto que não preveja as medidas adicionais que elencamos no início continuará, por isso, a ser inconstitucional.
Aliás, devemos fazer notar que as preocupações face à consanguinidade que estavam presentes na lei sobre PMA não se estendiam e não se estendem ainda às pessoas que nascem sem recurso a essas técnicas. Só com estas medidas poderemos também garantir que a consanguinidade é efetivamente evitada na reprodução.
Reconhecemos que estas medidas poderão obrigar a alterar os futuros enredos de telenovelas (que já não conterão as descobertas de “verdadeiros pais”) ou os títulos de canções pimba, mas julgamos que esse é um custo aceitável para o benefício que daí pode advir.
A paz familiar poderá ser afetada, mas a curiosidade prevalecerá.